quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Sou a tua menina papá, tens de me mentir!

Sou a tua menina papá.
Preciso hoje daquele colo que me davas
quando eu cabia  debaixo da mesa da sala da casa dos avós.
Preciso da tua mão a apertar a minha
e a assegurar-me que não caio,
como quando as minhas botas faziam soar
as folhas das árvores caídas ao lado do rio.
Vamos fazer um pacto de hoje e para sempre:
Mente-me!
Vais dizer-me que és o homem mais forte do mundo
E que ninguém me fará mal.
Que serás como uma chita e que correrás
Para me proteger em qualquer lugar.
Que sou o teu bem mais precioso
e que nunca tinhas conhecido o amor,
até me pegares ao colo pela primeira vez,
nas tuas mãos tão grandes como eu.
Sou a tua menina, papá!
Vais dizer-me que sou intempestiva mas que
a minha tempestade
é a mais bela chuvada de uma noite de Agosto
e que a energia que emana
de cada relâmpago,
apesar de agressiva e assustadora,
abre ao longe os caminhos mais escuros e impenetráveis.
Diz-me que vais ter orgulho em mim,
que para ti vou ser sempre a melhor.
Diz-me que estarás para sempre aqui.
Sou a tua menina, papá!
Tens de me mentir!

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Ciclo


Tantas foram as vezes
Que imaginei sair
E nada vivo encontrar
O deserto na cidade
E apenas os restos do homem
Os seus dejetos e vómitos
Que a culpa se abate sobre mim
E me sinto a morrer sem saber
Se serei mesmo o ultimo.
A lembrança inteligível de que fomos
A nada fará sentido e
Em breve tudo o que o homem construiu
Se destruirá
Sem hipótese de reconstrução
Apenas o vento continuará a soprar
E as marés subirão e descerão.
Como se nada tivesse acontecido.

As plantas e os animais reinarão, é certo,
E tudo voltará à paz primordial encerrada

Pelo primeiro homem. 
Liberdade é beijar
 por querer
Sem ter de pedir
para o fazer

Liberdade é agarrar
A tua mão
Sem ter receio
De um “então?”

Liberdade é abraçar
Desimpedida,  na rua
E sentir-me tão livre
Por ser tua.

Liberdade é
poder amar,
comprometer e

e por vontade ficar. 
Amo-te nesta ideia noturna 
da luz nas mãos 
E quero cair em desuso
Impedir a entrada do ar
Gelar o corpo por completo
E impedir a memória dos músculos. 

Amo-te no vislumbre impossivel de te ter
Na escassez do tempo que usámos
Nas palavras caladas precocemente
Nos projeto truncado de sermos só um
No meu ventre seco, faminto de ti.


Amo-te na tentativa constante e ainda
Inacabada de  reencontro,
No cheiro doce das flores comidas pelo sol
Na temperatura do mármore
Branco e brilhante,
Frio como os teus lábios,
No último beijo.

Amo-te já sem sentidos
Antes da terra me abraçar o corpo
E de tê-lo como tu o tiveste por inteiro,
Ascendendo pela luz na escuridão
Caído em desuso por ti.


domingo, 11 de outubro de 2015

Eclipse

Alto e sombrio como a lua nova
Belo e distante impossível de tocar
Em quarto minguante
Raramente quarto crescente
Lua cheia, nunca
A luz que emana agridoce
Suaviza-se noutras notas geográficas
Aqui é sempre áspera e dura
Uma lâmina afiada pronta a ferir
Rasga-se a luz que reflecte e escurece tudo à volta.

Eclipse lunar.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Adeus pode um ponto final em virgula.

Adeus, digo-te eu hoje.
Adeus, começo a despedir-me aos poucos.
Adeus, adeus, não cabes mais aqui. 

domingo, 18 de janeiro de 2015

Casa.

E fosse eu um gato escondido nos trevos
um nome inscrito na pedra
ou a romãzeira brava.

Fosse eu o sol por entre as folhas
ou a água fresca do poço.

Fosse o estalar dos galhos
ou o silencio da noite,
fosse as sombras,
as estrelas sem a luz
ou o medo do escuro.

Fosse o frio no inverno
depois da lareira e das portas trancadas.
Fosse o cheiro das laranjas,
as uvas azedas e envergonhadas .

Fosse as ultimas ameixas 
em cada ano que passava

Fosse as corridas de bicicleta
pelo corredor de pedra
ou a dos pés desatentos 
pelos caminhos da água.

Fosse o sótão, o presépio 
ou a casa da pesca
fosse a caixa de amendoins 
ou o quarto azul-escuro.

Fosse a caixa de postais 
ou o monge das caldas
os teus bifes secos
e as espirais com coentros.

Fosse a pia de lavar as mãos 
na cozinha da lareira
fosse a panelinha de esmalte 
e o armário do pão,
fosse o galo do tempo 
ou o telefone de roda,
fosse o alpendre das galinhas 
e a lúcia-lima em flor.

Fosse as sardinheiras ou as roseiras,
ou mesmo as sombrinhas chinesas,
fosse a cruz do Jacob
entre os maracujás e as tangerinas,
fosse as carpas e o Bobi.

Fosse os portões vermelhos e o tanque
fosse a terra, seca,
 ou a terra por secar.

Ah! Fosse eu tudo isto 
e tudo isto me suspendesse
não seriamos só o pouco tempo que resta.
Nem o tempo que foi.
Não seria vazia
nem degradação
seria Esperança
e seria Eu.
E nós.
E a cada dia
Naquele pedaço de terra
Reviveria 
Uma vida inteira.


quinta-feira, 19 de junho de 2014


Quero, no último dia de vida, perceber que é o último.
Quero sair da nossa cama pelo meu pé e com as mãos a tremer da força e do peso de uma vida, ir buscar à gaveta um bloco daqueles que colecionei a vida toda para escrever notas que nunca escrevi e uma caneta bic roída. Vou somar todos os momentos. Quero somar todas as noites que dormi contigo e contar muitas. Umas 10950, pelo menos. Quero contar também todas aquelas em que sonhei que ia acordar a teu lado e em que tu ainda não estavas lá. Foram essas que me deram esperança para acreditar que as outras iriam acontecer, mais tarde ou mais cedo.
Quero deixar-te um bilhete a agradecer por teres tido a maior de todas as coragens. Esta de arriscar tirar o amor do pedestal e trazê-lo para a terra, onde ele morre ou vive para sempre. Quero relembrar-te que foi difícil deixar tudo para sermos tudo mas que, afinal, no final, valeu a pena.
Não ouses partir antes. Não te poderia agradecer a pena de ter de morrer.

domingo, 8 de junho de 2014

Alguém que soubesse vestir! Vestir, não despir. Despir é fácil. A partir daquele momento em que, pouco depois da adolescência, aprendemos a técnica e já ninguém se importa com a razão pela qual somos muito experientes a desapertar soutiens e calças, conseguimos mais ou menos atrapalhados, fazê-lo. Despir, despe-se um qualquer. Agora vestir já é outra coisa. Implica paixão mas sobretudo amor. Não se veste uma pessoa que não se ama. Vestir é repor a ordem do caos antecedente. Vestir é agarrar as mãos com cuidado e coloca-las dentro das mangas do camisolão de lã, é ter cuidado com os óculos e com as orelhas dobradas na gola da camisola  É ajeitar o colarinho e puxar as mangas nos ombros. Vestir é regressar ao amor verdadeiro.

Talvez o teu lugar seja  mesmo naquela gaveta, submersa de pó e algumas teias de aranha, refundida no passado, onde se guardam aquelas coisas que nem podem ser deitadas fora de tão insignificantes que foram…

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Amoras Silvestres

Falava com um brilho de mil estrelas no olhar e o coração a bombear os lábios. Não tinha segredos, o seu peito era aberto e dele rebentavam raízes e rebentos fortes como os arbustos das amoras silvestres.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

A balança


Ana tinha sempre um sorriso nos lábios. Muita gente perguntava-lhe porque estava sempre a sorrir e ela contava sempre a mesma história, que vos passo a descrever.

Desde pequenina que ia para a mercearia da avó, uma daquelas mercearias a sério em que o café é a avulso, as encomendas embrulhadas em papel manteiga e as medidas pesadas numa balança de pesos. Tudo feito à mão com muito carinho e sem pressas.

Era, aliás, da balança que ela mais gostava. Primeiro, quando mal se aguentava em pé e até lhe nascerem os segundos dentes, entretivera-se a ver os pratos balouçar, poisando o que aparecia no balcão ora num, ora noutro prato da balança.
Quando entrou na escola, a balança começou a ensina-la a aprender os números, a contá-los e a chamá-los pelos nomes.

Com o tempo foi aprendendo a pesar.


Descobriu rapidamente que preferia um quilo de cerejas a um quilo de laranjas, embora um quilo de laranjas, quando na época, desse bastante sumo. Assim como percebeu que 4 pêssegos grandes pesavam cerca meio kilo e que isso não chegava a um quarto do peso de um ananás.

As pessoas achavam graça à sua forma de pesar os produtos e ela ia desenvolvendo uma mestria na pesagem que poucos igualavam.

A balança ensinou-lhe mais do que matemática.

Aos poucos e com o seu próprio conhecimento do mundo, foi desenvolvendo aquilo a que chamou “pesagem abstrata” e que consistia em pesar situações chave da sua vida, tal como pesava as frutas da mercearia da avó quando era pequena.

Pesava com precisão tudo aquilo com que se questionava:

Adiantaria dormir mais horas e não ver aquele filme que tanto gostava ou seria melhor ir trabalhar com olheiras no dia mas inspirada no seu filme favorito? Não se sentiria mais feliz?

Não seria melhor calçar sapatos rasos, menos elegantes, mas poder brincar no parque com o seu sobrinho à vontade? Não valeria o sorriso dele mais do que a elegância de uns saltos altos?

E aquele rapaz que tinha conhecido? Era simpático…  mas era prazeroso o suficiente na sua vida para ficar triste? Talvez não valesse tanto a pena.

                Ana respondia a todas as questões metendo-as à prova na sua balança.


                Era por isso uma pessoa feliz, por ter uma boa balança interior, das que pesavam com carinho, sem pressas.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Palco.


E vi-te do palco na penumbra da plateia mas não eras tu. Era outra pessoa. Outra que ali estava por ninguém em concreto. Mas apetecias-me tu. As tuas palmas e o teu sorriso orgulhoso e encorajador, era assim que o queria. Depois apetecia-me a tua mão na minha e a minha cabeça no teu ombro no final mas tu não tinhas nada para me dar.

sábado, 2 de março de 2013

ZONA, uma exploração performativa.


Por vários dias fomos acordando e tudo estava a mudar lentamente à nossa volta. Cortes e pequenas imposições. Fomo-nos habituando. Fomo-nos dando bem. Alguns, jovens sobretudo, rebelavam-se mas, quase sempre pacificamente. As alterações na vida de todos os dias aconteciam cada vez menos espaçadas entre si, anunciadas na televisão, cada vez mais intensas e incomodas mas todos estávamos cada vez mais adaptados e resistentes. As dificuldades desenvolviam em nós a capacidade de nos sentirmos resistentes e isso despertava em nós um certo orgulho.

Sem darmos conta ficámos virados do avesso no meio de uma superfície côncava, numa realidade deixada construir por nós.

As crianças não brincar. Já não há o “ toca e foge”, o esconde-esconde, a macaca, o jogo do galo e a cabra-cega. Não há animais aqui para podermos brincar. Estamos enclausurados e já não é tempo para brincadeiras.

Há uma mulher que urra no centro da praça. Está vendada com as mãos atadas à ação e os pés presos num canteiro de sonhos podres. Urra de dor e urra de prazer porque lhe cortaram as mamas. É uma das duas amazonas que também aqui estão. A outra vivem nós que lhe comemos a pele e os ossos queimados do ferro. Aquele ferro com que nos alisam a pele todas as manhãs e nos fazem ser iguais. Linchados pelo quente. Todos iguais menos aquele que teve a coragem de passar a ferros os seus para salvar a sua pele.

Há foto, de familiares e de amigos, espalhadas na única janela de onde se podia antes ver a luz. Esta era a condição entre a qual teríamos de escolher para não nos esquecermos de quem fomos. Para podermos continuar a viver no passado. Contudo em cada foto em que aparecíamos fomos recortados, rasgados e lançados para a fogueira. Também não há espelhos nem materiais que possam refletir. Nunca mais nos vimos desde que entrámos aqui.

Todos se deixaram enlouquecer para se alimentarem menos do cimento.

Um soldado morreu afogado numa floreira de margaridas por não ter ninguém que o coroasse no seu funeral. É comido agora pelas gaivotas que só não lhe arrancam os olhos por já toda a gente lhe ter comido as unhas e aproveitado as roupas.

Aqui ninguém gosta de soldados. Há merda, merda espalhada por todo o lado, pedaços internos de gulodice e fuga.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Que morras mar

Que sejas uma onda,

E que rebentes à chegada.

E que não me inundes mais.


Quero que morras a tentar voltar ao rio,

A remar contra a tua própria corrente.


Quero que morras,

que morras

a cada tentativa de me enrolares na areia da praia,

a cada puxão que fazes de mim contra ti,

a cada vai e vem continuo, medido e calculista.


Quero que morras

E que não destruas com a tua força em segundos

o forte que demorei a construir ao longo dos anos.


Quero que morras 

E que não me temperes a pele para,

Em seguida, me dizeres que é demasiado salgada.


Quero que morras,

quero que morras em mim,

para que o verão possa voltar

 rapidamente.