domingo, 30 de dezembro de 2012

Ela.


Chorou dois dias seguidos e quando acordou, limpou o sal depositado no canto dos olhos, avaliou o inchaço causado nas pálpebras e lavou a cara com água fria. Passou a base para minimizar as mazelas das últimas noites e alimentou o corpo que não comia desde que começara a chorar. Era uma manhã fria, uma das últimas de dezembro e estava na altura de tecer caminhos como fazia sempre no final de cada ano. Pegou na caixa de costura e avaliou a malha grossa que há muito compunha um cachecol interminável. Era ali que, quando precisava, se punha a pensar. Manuseava, tecendo resoluções, tricotando hipóteses e bordando ilusões. Nunca chegava ao fim. Hoje segredaria à lã com muita força. Falava-lhe como quem fala às plantas querendo falar a alguém querido mas não tinha ninguém com quem falar. A cada fiada de lã estava mais sozinha e já não ouvia a voz humana que a rodeava há muito tempo. Desejava o dia que o Carteiro lhe levaria cartas mas ninguém lhe escrevia porque há muito que cortara relações com o mundo. A única pessoa que a via mais a miúde era o rapaz da mercearia mas nem com esse ela se ligava. Abria-lhe a porta muito rápido, o suficiente para deixar passar o saco das compras, sem nunca o olhar, esticando-lhe o dinheiro já pela fresta da porta. Era muito tímida. Sabia exatamente a hora a que o rapaz chegaria, ele era muito pontual, e mal ouvia as rodas da bicicleta a deslizar na gravilha o coração batia tão forte que parecia ser um pássaro batendo violentamente contra as grades da gaiola. As suas faces avermelhavam e pareciam dois morangos enormes e sumarentos mordidos a meio e esquecidos a manchar o último nevão antes da primavera.

Era uma mulher alta e esguia mas tão embutida em si que não parecia maior que uma criança de 10 anos. Os seus cabelos escorridos muito escuros tapavam-lhe o corpo parecendo querer empurrá-lo para o chão. Era jovem, apesar do tempo ter passado por ela três vezes. Quem a olhava via sobretudo uma pessoa cansada… Poucos ousavam acha-la triste. Parecia-lhes mais rezingona e mal-educada e, por isso, poucos desejavam compreender o que se passava dentro dela.

Nenhum comentário: