domingo, 3 de abril de 2011

bairro de gerações.



“...a ti minha única neta, Gabriela, que gostas de surpresas, de coisas antigas e estás em tempo de começar a viver fora do ninho, pertence a casa da avó Laura, no bairro que tanto gostas e que não sabias existir”.

E assim descobri que agora tinha uma casa no bairro alto.
Entrei nesta casa bafienta e perdida no tempo pela primeira vez. Tantas vezes olhei para este prédio derreado como tantos outros, no bairro dos copos com os amigos e do “quem me dera morar aqui” e jamais imaginara que, ali dentro, uma parte dos meus antepassados minguava ainda.
Agora que ao bairro regresso, de dia, para conhecer o que me foi dado a pertencer, sinto-me a invadir vida que não me pertence. Tudo deve, calculo eu, permanecer no mesmo lugar desde que a avó Laura morreu. Não compreendo como tantos anos se passaram e a minha avó ou mesmo a mãe nunca mexeram em nada, nunca fizeram menção de fazer existir esta casa nas nossas vidas. Descobri-a agora porque a avó Isabel ma deixou em testamento. Os naperons em cima da mesa da sala, os sofás em tweed com pé de palito a poltrona de pele verde garrafão, o papel de parede desbotado e a cair aos pedaços fazem-me sentir uma certa repugna em mexer nestas coisas protegidas pelo pó e pelas sólidas teias de aranha. Ao fundo da sala, por baixo de uma arca grande jugo ver um rádio semi-escondido. Dirijo-me até ele mas rapidamente o esqueço para me debruçar sobre esta majestosa arca. A curiosidade de descobrir o que guarda e o desejo de conhecer quem foi esta avó Laura é mais forte do que o pó deixado pelo tempo e o fecho podre facilita-me o desejo. Consigo abri-la sem dificuldade, entre papéis, óculos obsoletamente trendy e outras bujigangas encontro varias fotos e cartas. Entre muitas, uma porém chama-me à atenção. Encontro-a protegida por um pano de flanela a fazer de capa. É acompanhada de uma carta escrita a tinta numa letra cuidada mas melancólica e arrastada que deixa antever a tristeza confirmada pelos borrões. Tento decifrar esta letra em tinta acastanhada pelos anos e leio:


Querida Neta, esta foto foi tirada no dia em que a avó fez 70 anos. Tu e os teus pais vieram almoçar comigo e tu ficaste a passar a última noite com a avó. Deixei-te brincar na rua porque apesar de ser Novembro estava um ameno dia de sol. Na foto estás tu e o Joãozinho, brincam. Não sei se por o João ser o neto do António, tenho uma ternura especial por esta foto. Escrevo-te a ti esta carta, sem saber se serás tu a lê-la mais tarde, mas por saber que já terás a distância necessária, que a tua mãe não teria, para a poderes compreender. Talvez seja, até, o novo dono da casa a ler esta carta mais tarde e nada disto lhe fará sentido, somos apenas personagens com rosto mas sem vida e pouco importaremos ao novo inquilino. Perguntarás quem é o António, atenta na foto. Em segundo plano, aparece um senhor a assar castanhas e, atrás dele, um vulto. Esse vulto é o António. O grande amor da vida da avó. Apaixonei-me por ele com pouco mais de 15 anos. Ele tinha cerca de vinte anos, era um jovem de estatura média alta, apesar de na foto aparecer já mirrado, e bem-parecido embora de famílias humildes mas descobertas. Contra o meu pai e os meus irmãos vivemos um amor tórrido que quando foi descoberto e denunciado pela minha barriga deixou o António com as duas pernas partidas e levou-me para um convento em Serpa longe dos olhares dos vizinhos curiosos. Alguns meses depois nasceu o meu filho mas a tristeza que eu vivi durante a gravidez, dizia a irmã Maria, fez com que ele não vingasse e partisse dois dias depois de ter visto o mesmo sol que te iluminava a tarde nesta foto. Assim que me restabeleci fisicamente fui colocada no altar ao lado de um distinto senhor, funcionário público de bom cargo e potencial que não se importaria de ficar comigo apesar da minha condição. Como se um homem solteiro de quase 50 anos fizesse um favor por se casar com alguém. O meu pai havia querido afastar-me do António e a este foi dito que eu teria ido de férias e conhecido o meu novo marido, mais tarde fiquei a saber que lhe chegou uma carta que embora em meu nome nunca havia ter sido escrita por mim, na qual eu desvalorizava os seus e os meus sentimentos, levando o António a procurar outra mulher. Na mente ficou sempre cravado o luto do amor de meu António e do nosso filho e a impossibilidade de, na clausura de um casamento, voltar a encontrar o meu amor. Os anos foram passando calmamente, pouco depois do nascimento da tua mãe o teu avô deixou de se preocupar com as minhas obrigações de esposa e voltou às companhias das noites de homem solitário. Eu atarefava-me a educar a tua mãe e a conter o meu desgosto no quadrilê de ponto cruz ou nas bainhas abertas do lençóis de linho, que me apressava a fazer, qual Penélope esperando o seu Ulisses. A vida foi correndo, a tua mãe cresceu tornou-se uma mulher, casou feliz num casamento desejado e veio viver para Lisboa. Ao contrário do que o teu avô desejava não tivemos mais filhos, o meu corpo ainda hoje de aspecto juvenil encarregou-se de envelhecer a minha fertilidade e impediu-me de ter filhos muito cedo. Com o avançar da idade fui me acostumando à ideia de que nunca mais veria António, não sabia se era ainda vivo ou se já havia falecido. Nunca mais o vi nem havia tido notícias dele, até ao dia em que decidi vir viver para esta casa, após a morte do teu avô, há bem pouco tempo. Encontrei-o por acaso quando no primeiro dia que aqui pernoitei, habituando-me ao conforto de viver sozinha, decidi ir comprar o pão fresco para o pequeno-almoço. Ali estava ele, ao balcão da padaria, não me perguntes como ao fim de tantos anos, aquele homem mirrado me fez crer ser meu António confirmado quando, ao ficar de frente para mim me reconheceu também. Olhou-me zangado e saiu. Segui-o, chamando-o pelo nome, e apesar da minha idade senti-me uma jovenzinha. António disse não me conhecer com os olhos revoltos de lágrimas rancorosas e quando a sua mulher chegou à porta, ao ouvir o alarido apenas consegui dizer que me havia enganado e que aquele não era o António que me tinha parecido inicialmente. Mentira. Era ele, o meu António que agora ao passar de tantos anos não me queria falar e que direito tinha eu de, entrar na vida daquele homem e fazer como se todas estas décadas fossem apenas minutos de distanciamento? Que direito tinha eu de lhe contar que havíamos tido um fruto do nosso amor para logo depois lhe roubar a ideia do filho varão que eu havia mordo de tristeza? Pensava que um dia conseguiria falar com o meu António mas durante dois meses sempre que o vislumbrava não ouvia a sua voz e fui-me contentando com este amor decorado com antónimos, velho e platónico. Esta foto em que apareces é a única recordação que tenho dele até porque dias depois ele partiu para o hospital e não voltou, febres disseram e eu fiquei sem o meu António. Agora que o perdi pela terceira vez depois de achar que o já havia perdido há anos sinto não aguentar mais, aquilo que me parecia ter sido a melhor opção, viver aqui para estar perto de ti, minha neta e da minha filha, revelou-se agora um sufoco insuportável. Hoje vou partir também e espero encontrar o meu António.



Depois de ler esta carta, destinada à minha mãe fiquei atónita. Deparo-me se agora lhe devo contar deste encontro com uma bisavó apaixonada. A minha mãe sempre me falara desta sua avó de uma forma triste de quem não percebia como tinha perdido a avó dos pequenos-almoços de pão fresco e lençóis de linho. E eu vim conhecê-la no bairro alto, bairro do amor de Jorge Palma e dos desamores da minha bisavó. Num desencontro de avós e netas e cartas com destinos trocados.

2 comentários:

Máfia disse...

Like! pensei mesmo que estavas a descrever algo real.

Noise disse...

O M G ! pensei mesmo que era real também! MUITÍSSIMO BOM!

se da tua cabeça, de uma foto sai isto, tenho medo (ou não) do que sairá de outras coisas xd