domingo, 13 de fevereiro de 2011

Carta Avós

Nas últimas vezes que entrei na casa senti uma catadupa de recordações. Lembranças boas num sitio que durante muito tempo vivi, não me permitindo contudo, perceber a sua importância na minha vida.
Começo por ir ao quintal, a primeira coisa que faço quando entro.

Ainda me custa ver que a laranjeira central foi roubada, contra a minha exposta vontade, restando apenas a recordação de, uma vez, talvez a única vez que isto aconteceu, ter andado a correr à volta dela num jogo edipiano de apanhada.

Agora, os pardais que têm dormido na outra laranjeira que ali jaz sozinha fazem-me relembrar o tio. Nunca acontecera ver o chão sujo como agora e divago sobre a razão. Relembro, então, um tio austero que não permitia que os pardais ali vivessem. Agora, parece que eles sabem que a casa está mais abandonada e talvez se sintam à vontade para ocupar a laranjeira em segurança. Apesar de adorar pardais que se aninham, ao final da tarde, nas copas das árvores, sinto-me triste. É a confirmação de que morreu uma parte de mim.

É incrível como um sítio pode ser tão cheio de recordações. Para qualquer canto que olho relembro situações que me fazem, por sua vez, lembrar outras: A festa dos meus 6 anos, o primo que apareceu um dia e que me ensinou a saltar à corda, e entre tantas outras, uma que me surge quando Olho a janela da minha casa. Durante uns tempos a janela, que dava para o teu quintal, esteve sem vidro e era o intercomunicador que usava para falar contigo. No filme da minha festa de 6 anos que fizemos aqui no quintal oiço a tua voz a contar a alguém que eu chamava-te pela janela enquanto tu preparavas a prenda que me ofereceste e que ainda hoje eu guardo (também me lembrei-me dela agora: um postal com um palhaço em marca de água na parte de trás e à frente uma rosa, não me recordo se de alguma roseira que tenha existido aqui no quintal, ou se de uma roseira que ainda existe na casa dos meus avós), imitas-me no vídeo "Oh Tiiiiiiia, oh Tiiiiiiiiiiiia"... Mas se tu hoje fosses viva e a janela ainda estivesse sem vidro e eu me pudesse empoleirar nela, não seria de Tia que te ia chamar. Passava muito tempo contigo, aqui em casa assisti aos episódios da Pedra sobre Pedra que dava antes de jantar, hora que o teu irmão te vinha visitar. Já nem me lembrava que o Avô cá vinha todos os dias conversar. Agora que me lembrei relembro também de um bolo que a minha mãe fez uma vez e que nós não gostamos, bem, talvez tu tenhas gostado porque eras gulosa e gostavas de tudo, mas que o avô adorou e pedia religiosamente quando chegava, não desonrando a receita. Gostava quando me deixavas ver desenhos animados aqui em casa, no canal dois, até à hora do tio chegar da tapada, nesse momento acabavam-se estes privilégios e tínhamos de ver o telejornal. A essa hora eu já implorava para que a minha mãe chegasse porque, em seguida, veriamos o jornal das 22h, na rtp2. Na altura estava pouco preocupada com o que se passava no mundo. Adorava brincar no quintal, em cima do poço montava uma cozinha de brincar digna de um chef de cozinha e aos sábados, quando o tio tomava banho, eu adorava estar ali, a tentar chegar à janela para espreitar. Cuidavas dele com uma dedicação maternal, que hoje em dia me faz reflectir, mas hoje não quero pensar em vocês como um homem e uma mulher com as suas histórias individuais que me fazem especular e divagar. Hoje olho-vos como quem vos recorda como duas das pessoas que mais importantes foram na minha vida.

Não só lhe davas banho como lhe fazias o chá com folhas de tília compradas numa casa em Vila Franca que ficava, ou fica ainda, perto do meu pediatra. Também cortavas o chocolate que trituravas à mão, numa máquina igual à que a minha mãe usava para fazer esparregado. Depois, derretia-lo e misturavas com água e leite Molico, porque o tio não gostava de lácteos. Dizia ele: "Leite nem o cheiro" e contava uma história de como em pequeno teve de beber muito e enjoou, mas adorava o puré da minha mãe, o arroz doce da Eglantina e pudim...

O Leite em Pó foi deixando aqui em casa caixas azuis que usavas para guardar coisas, eras muito arrumada, muito cuidadosa, andavas sempre a colocar tudo no seu devido lugar, detestavas migalhas que andavas sempre a apanhar, aproveitavas tudo, inclusive as tais caixas do Molico. Lembro-me de uma vez estar a fazer os trabalhos de casa aqui contigo e de precisar de um afia e tu ires à caixa buscar um. Recordo-me que na altura achei esquisito tu teres um afia para me emprestares afinal de contas não escrevias muito, não eras professora e eu achava que eras demasiado velhinha para teres um afia do tempo em que estudavas mas, a verdade é que ainda hoje encontrei o afia verde lá na gaveta e com ele duas borrachas velhas e redondas do tamanho de um botão, moldadas de estarem gastas.
No Natal também me lembro sempre de ti. De ires ao sótão, e tenho sempre a sensação de que foi algo que te ocorreu apenas na altura, buscar um grande alguidar de barro, que ainda hoje existe, e de nele bateres uma massa de sonhos ou filhoses ou bolinhos de jerimu, não sei o que eram, apenas sei que sabiam a aguardente e que eram os melhores de todos, de todos o que comi nesse ano. E nos anos seguintes também. Lembro-me de amassares, de tapares com um pano e de dizeres que agora íamos deixar que  a massa crescesse durante uma hora, e eu tinha a idade em que uma hora é uma eternidade, e foi contigo durante essa hora que aprendi que a massa pode crescer ao ar. Sempre que como agriões recordo-me de ti, recordo-me de uma sopa que fazias e que eu dizia que "sabia a batom" e que tu te rias com esta patetice, que jeito uma sopa saber a batom. Adorava desapertar-te o laço do avental e ainda me lembro dos nomes carinhosos que me chamavas quando o fazia. Na verdade acho que ainda consigo, se me esforçar um bocadinho, recordar a tua voz.

Tinha uns ciúmes imensos de ti, eram imaturos e de quem sentia que a mãe era roubada por uma irmã muito mais velha, mais velha até que a própria mãe, e só há pouco tempo percebi que foi aquilo que proporcionou estes ciúmes que fez também com que entrassem, tu e o tio, na minha vida de uma forma tão presente.

Às vezes é assim, apercebemo-nos tardiamente de quão importantes foram algumas pessoas para nós. E eu apenas percebi quem era o tio para mim, quando amiúde regressava aqui. Ele dizia-me a tremer como que com o corpo embargado de lágrimas que os olhos não transpareciam o quanto gostava de mim e eu só percebi quando já perto da sua partida me recordava de conversas que tinha tido comigo, ao seu jeito falou-me da vida, de orgulho e mostrava-me o amor de avós, aquele que desinteressado e verdadeiro só senti de vocês. Ainda tive tempo de lhe retribuir o carinho, ficando ao seu lado quando os fios se desprendiam. Mas tu, tu foste embora sem eu ter percebido que isso ia acontecer e entristece-me profundamente saber que me foste roubada tão cedo. Saudades. Tia-Avó Maria.

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