Por vários
dias fomos acordando e tudo estava a mudar lentamente à nossa volta. Cortes e
pequenas imposições. Fomo-nos habituando. Fomo-nos dando bem. Alguns, jovens
sobretudo, rebelavam-se mas, quase sempre pacificamente. As alterações na vida
de todos os dias aconteciam cada vez menos espaçadas entre si, anunciadas na
televisão, cada vez mais intensas e incomodas mas todos estávamos cada vez mais
adaptados e resistentes. As dificuldades desenvolviam em nós a capacidade de
nos sentirmos resistentes e isso despertava em nós um certo orgulho.
Sem darmos
conta ficámos virados do avesso no meio de uma superfície côncava, numa
realidade deixada construir por nós.
As crianças
não brincar. Já não há o “ toca e foge”, o esconde-esconde, a macaca, o jogo do
galo e a cabra-cega. Não há animais aqui para podermos brincar. Estamos
enclausurados e já não é tempo para brincadeiras.
Há uma mulher
que urra no centro da praça. Está vendada com as mãos atadas à ação e os pés
presos num canteiro de sonhos podres. Urra de dor e urra de prazer porque lhe
cortaram as mamas. É uma das duas amazonas que também aqui estão. A outra vivem
nós que lhe comemos a pele e os ossos queimados do ferro. Aquele ferro com que
nos alisam a pele todas as manhãs e nos fazem ser iguais. Linchados pelo
quente. Todos iguais menos aquele que teve a coragem de passar a ferros os seus
para salvar a sua pele.
Há foto, de
familiares e de amigos, espalhadas na única janela de onde se podia antes ver a
luz. Esta era a condição entre a qual teríamos de escolher para não nos
esquecermos de quem fomos. Para podermos continuar a viver no passado. Contudo
em cada foto em que aparecíamos fomos recortados, rasgados e lançados para a
fogueira. Também não há espelhos nem materiais que possam refletir. Nunca mais
nos vimos desde que entrámos aqui.
Todos se
deixaram enlouquecer para se alimentarem menos do cimento.
Um soldado
morreu afogado numa floreira de margaridas por não ter ninguém que o coroasse
no seu funeral. É comido agora pelas gaivotas que só não lhe arrancam os olhos
por já toda a gente lhe ter comido as unhas e aproveitado as roupas.
Aqui ninguém
gosta de soldados. Há merda, merda espalhada por todo o lado, pedaços internos
de gulodice e fuga.
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